20.1.09

#20

Design e Fisioterapia: Que relação?

Quem disse que o design não tinha nada a ver com fisioterapia ou saúde?
(amiguinhos, e vocês bem sabem que não gostei nada do curso!).
Não deixa de ter sido importante, no entanto, ter aprendido algumas questões ligadas ao quotidiano urbano, as conhecidas barreiras arquitectónicas com que nos deparamos todos os dias e muitas vezes nos passam ao lado.
Pois era disto mesmo que vos vinha falar hoje.
Não se riam, mas, quantos de nós já viram cocó no chão? Exactamente, nós todos. Contudo, conseguimos desviar a nossa marcha; o cocó fica para trás e já nem pensamos nisso o resto do dia. Ficamos tão tranquilos. Como diria um professor nosso conhecido, "nem olhamos com atenção por onde passamos". E isto porque olhar, observar e ver são situações diferentes.. (devíamos dar mais valor a isto, porque como bem sabem há quem não o possa dar)
Agora imaginem alguém com cadeira de rodas manual, ou seja, "dar à manivela". Juntem à fotografia um cocó bem redondinho. Já conseguiram imaginar as consequências? Nós não temos de passar por essa situação, mas há quem a passe e é para essas pessoas que também temos de pensar ao fazer Design!
Consigo dar-vos mais situações para irem pensando na importância do Design e como nós podemos ser "pequenos deuses" (como diria o outro).

  • Limitações funcionais a nível das articulações nos membros superiores. Por exemplo, quem for para ambientes: têm um projecto para a casa-de-banho de um senhor. Têm que interagir com ele, perceber o que é que ele pretende, porque decidiu mudar o visual à casa-de-banho (parece óbvio, mas não é); que tipo de estruturas queria ver incluídas; se tem dificuldades a nível de motricidade, enfim, fazer uma espécie de "entrevista clínica". E por que razão o último ponto é importante na avaliação de um projecto de casa-de-banho? Porque vão ter em linha de conta medidas e estas não podem ultrapassar o limite funcional do senhor em questão. Imaginem que ele só consegue realizar 80º de extensão (o normal é 180º): ao colocarem um armário muito alto ele vai ter dificuldades funcionais, que se as esforçar acaba por ficar pior. Por isso, o mais correcto será mesmo avaliar bem o nosso cliente. Uma situação mais caricata seria o local onde colocar os rolos de papel higiénico. A extensão que realizamos no membro superior, para a parte posterior do nosso corpo é de cerca de 45º. Alguém que tenha uma extensão de 20º vai ter dificuldade em alcançar o papel higiénico se a sua estrutura for colocada para lá dos limites que nos são próprios. Para a parte anterior a lógica é a mesma, mudam é os graus.

  • O tipo de chão para a cozinha. De certo devem saber que o nosso tipo de marcha varia de acordo com o tipo de solo que pisamos. Posto isto, imaginem que têm como cliente uma senhora de 80 anos, que mal consegue realizar marcha e tem duas canadianas como ajuda motora. Esteve sempre habituada ao chão da sua cozinha, de madeira. O vosso projecto prevê alterar a madeira por mármore. Neste caso, o mais indicado seria não mudar o tipo de material presente no chão. E isto porquê? Não é porque achamos mais bonito, moderno, contemporâneo, giro (!), mas sim por outras questões. Ás vezes não podemos fazer aquilo que mais gostamos, mas sim, ir de encontro às soluções mais indicadas para os nossos problemas. A primeira razão prende-se com o facto da senhora ter treinado sempre a sua marcha em solo de madeira. Já sabe os cuidados a ter, até porque foi o próprio fisioterapeuta a indicar-lhe quais as precauções que teriam de estar presentes cada vez que ela fosse à cozinha. (sim, este também é o papel do fisioterapeuta) Agora imaginem que alteram o material para mármore. É o desaprender de todo um conjunto de situações que já estavam presentes na vida da senhora. É o mesmo que irem para as aulas de condução num Honda e depois começarem a conduzir um Peugeot. O choque inicial está presente e vão ter que se adaptar a uma nova e diferente realidade. A readaptação não custa demasiado, até porque o ser humano está apto para tal, mas no caso da senhora de 80 anos podia ser catastrófico: pelas suas limitações funcionais podia muito bem cair. A queda aliás, é um dos maiores factores de morte entre os idosos. (esta seria, então, a segunda razão)
Consigo também arranjar argumentos para aqueles que pretendam seguir Design industrial.

  • Um amigo vosso sofreu um AVC (Acidente Vascular Cerebral), recuperou a fala e actualmente realiza exercícios de fisioterapia para aumentar a amplitude articular do membro superior e das mãos. Tem a sensibilidade alterada e uma deformidade na mão, em garra, com as falanges em flexão. Existe uma clara dificuldade do utente em realizar uma pinça do polegar com a 1ª e 2ª falange, mas já conseguiu, graças à fisioterapia, recuperar a amplitude articular do membro superior. Geralmente, para treinar as pinças utilizam-se quaisquer tipos de objectos: escova do cabelo, feijões, bolas de ténis, copos, etc. Ao realizar a entrevista clínica o utente refere que o seu objectivo é "conseguir comer". Perante esta imagem, o Designer Industrial ia ter como meta a elaboração, (por exemplo), de um novo serviço de talheres. Uns talheres que lhe permitissem levar a comida à boca e que ele conseguisse pegar neles (como pinças). Com isto também se treinavam os exercícios de amplitude articular. Este é só um exemplo, entre muitos, das vantagens do Design na Fisioterapia (e noutros campos da saúde)
Ora digam lá se isto não dava um bom tema de monografia? Se na altura não surgir mais nada, é mesmo com este tema que fico.
Para assinalar estes meus pensamentos no blog, encontrei um curso de especialização no Instituto Superior Técnico (IST) em Design para a diversidade, ou Design para todos. Este curso é interessantíssimo para aqueles que estejam interessados na temática que aqui abordei. Está com apoios do centro português do design e da liga portuguesa de deficientes motores.

Passo a citar,

A abordagem do "Design for All" ou "Design para a Diversidade"

A abordagem do "Design for All" é consequência de uma mudança na percepção de que a eliminação sistemática de situações desadequadas às incapacidades deve estar mais centrada na Pessoa ou Utilizador do que no Projectista. Esta, a centrada no projectista ou designer, reflecte a anterior atitude de reabilitação ou de interacção entre grupos sociais. O "Design for All", que designamos em português por “design para a diversidade”, é um novo conceito/paradigma que teve a sua génese nos movimentos cívicos e de emancipação que se formaram após a Segunda Guerra Mundial, e que nos dias de hoje demonstra a sua premência através do confronto ou conflito entre o indivíduo e o modo como a sociedade por vezes se organiza, nomeadamente em termos da sua estruturação sócio-espacial e de acessibilidades físicas."

// mais info: http://www.demat.ist.utl.pt/design/introducao_introducao.html

Existe ainda um organismo europeu para esta área específica do Design. Podem consultar o sítio web aqui: http://www.designforalleurope.org/

Quando entrei para fisioterapia tinha uma ideia muito utópica do "ajudar o outro". Pensava que era uma profissão recompensadora, porque chegávamos a casa e podíamos dizer "consegui que ele andasse", ou "consegui fazer alguém feliz". Contudo, deparamo-nos com uma situação muito diferente, onde não existem muitos meios e onde muitas pessoas estão condenadas a ter aquele estilo de vida para sempre (mesmo que cá por dentro sejamos mais teimosos e pensemos que não é possível, tem de haver uma solução). O Design veio mudar a maneira de eu ver o mundo e por muito que as pessoas digam que o primeiro nada tem em relação com o segundo, engane-se. Com o Design é que eu posso chegar a casa e dizer "consegui fazer alguém feliz"; "consegui fazer com que alguém andasse!" ou ainda "consegui fazer com que alguém reaprendesse!".

No fundo, é uma questão de consciência. :)

3 comentários:

Aninhas disse...

Bom tópico.

Um dos meus trabalhos em design, este ano, tinha como objectivo encontrar os diversos erros que existem (à escala da mão, à escala do corpo e à escala urbana).
Antes da apresentação, claro, falei com os meus professores em relação aos erros que tinha pensado e encontrado. Ao nível da cidade, ou escala urbana, peguei em exemplos das pessoas com mais dificuldades em se movimentarem (pessoas que andam em cadeiras de roda) e invisuais.
Embora não tivesse tido a oportunidade de pegar nestes erros que considero como verdadeiros erros, quando me coloco na "pele" destas pessoas, isto deixou-me a pensar.

Muitas vezes quando fazemos algo: um objecto, uma casa, ou mesmo um anuncio publicitário, pensamos num público alvo semelhante a nós. Mesmo quando queremos que a nossa mensagem seja divulgada para todos. É um pouco egoísta da nossa parte, mas torna-se a realidade (infelizmente).Há que mudar a mentalidade e alargar os horizontes, porque o mundo não é so o que vemos, é também o que está para além do nós, mas está mesmo ao nosso lado. Temos de pensar em todos, de forma igual.

Gostei sim do tópico, porque já pensei muito nisto, principalmente no teu ultimo exemplo. Pois a minha vontade era neste momento ser designer industrial e pensar nas pessoas com idades avançadas que têm um AVC e em parte ficam incapacitadas (seja na fala, seja na deslocação, seja em simplesmente agarrarem objectos).

Só tenho pena de, de momento não me poder meter em cursos. A universidade está a ser muito puxada, são muitos trabalhos e cada um "pior" que o anterior! =S

Obrigada por este momento de reflexão, bjinhos**

Aninhas disse...

Ups, P.S. Já viste como foi bom o tempito que tiveste em fisioterapia?! =)De certa forma, abriu-te a ti os olhos para outros problemas! Não foi assim?

moya disse...

sem dúvida aninha, acho que na universidade não aprofundamos muito estes assuntos..